Santa Maria do Egito |
“É bom esconder o segredo de um rei, mas é glorioso revelar e praticar as obras de Deus.” (Tb 12,7) Assim disse o Arcanjo Rafael a Tobias quando o curou de sua cegueira. Na verdade, não guardar o segredo de um rei é um grande e perigoso risco, mas silenciar sobre as obras de Deus é uma grande perda para a alma. E eu (diz São Sofrônio), ao escrever a vida de Santa Maria do Egito, fico temeroso de esconder os feitos de Deus pelo silêncio. Lembrando-se da desventura do servo infiel que escondeu os talentos dados por Deus na terra (Mt 25: 18-25), estou seguro para contar a sagrada estória a que tive acesso. E não pensem (continua S. Sofrônio), que ousei escrever alguma inverdade ou fato duvidoso sobre essa grande maravilha - que eu nunca minta sobre coisas santas! Se acontecer que pessoas leiam esse relato e não acreditem, que o Senhor tenha piedade delas, porque, refletindo sobre a fraqueza da natureza humana, eles consideram impossível estas coisas maravilhosas acontecerem com pessoas santas. Mas agora, devemos iniciar o relato dessa incrível estória que aconteceu em nossa geração: — “Havia um certo ancião em um dos mosteiros da Palestina, um padre de vida e palavra santas, que desde a infância foi criado no caminho e nos costumes monásticos. Este ancião chamava-se Zózimo. Em toda sua vida ascética e em tudo o mais, ele aderiu à Regra dada a ele pelos seus mestres, no que dizia respeito aos trabalhos espirituais e a isso ele acrescentou por si mesmo mais trabalhos, a fim de sujeitar a carne à vontade do espírito. E ele não falhou no seu objetivo. Ele era tão renomado por sua vida espiritual que muitos vinham a ele dos mosteiros vizinhos e outros de bem longe. Durante sua vida nunca deixou de estudar as Divinas Escrituras. Seja descansando ou de pé, trabalhando ou comendo (se as migalhas que ele comia podiam ser chamadas alimento), ele incessantemente e constantemente tinha um único objetivo: sempre cantar a Deus e praticar os ensinamentos das Divinas Escrituras. Zózimo costumava contar que desde que foi retirado do seio de sua mãe e foi entregue ao mosteiro, ele se submeteu ao treinamento ascético até a idade de 53 anos. Depois disso, ele começou a ser atormentado com o pensamento de que ele era perfeito em tudo e não necessitava de instrução alguma de ninguém, dizendo a si mesmo mentalmente, "existirá algum monge na terra que pode ser útil a mim e mostrar-me um tipo de ascetismo" que eu já não tenha realizado? Haverá algum homem no deserto que tenha me superado?” Assim pensava o ancião, quando de repente um anjo lhe apareceu e disse: — “Zózimo, você lutou valentemente, tanto quanto esteja na capacidade humana, valentemente você trilhou o caminho ascético. Mas, não há homem algum que tenha atingido a perfeição. Antes que você minta, batalhas não conhecidas, maiores do que as suas foram realizadas. Para que você conheça quantos outros caminhos levam à salvação, deixe sua terra natal, como o patriarca Abraão e vá para o mosteiro à margem do Rio Jordão”. Zózimo fez como lhe fora dito. Deixou o mosteiro no qual vivera desde a infância e foi para o Rio Jordão. Finalmente chegou à comunidade para onde Deus o enviara. Batendo à porta do mosteiro, disse ao monge porteiro quem ele era e este reportou ao abade. Sendo admitido à presença do abade, Zózimo fez a prostração usual e suas orações. Vendo que ele era um monge o abade perguntou: — “De onde vens irmão, e porque vieste a nós pobres anciãos?” Zózimo replicou: — “Não há necessidade de dizer de onde eu vim, mas vim, Pai, buscando ajuda espiritual, pois ouvi grandes maravilhas sobre sua habilidade em conduzir almas para Deus”. “Irmão”, disse o abade , “apenas Deus pode curar a enfermidade da alma. Que Ele ensine a ti e a nós seus divinos caminhos e nos conduza a todos. Mas já que é o amor de Cristo que te trouxe para visitar-nos, pobres anciãos, então fique conosco, se é por isso que tu vieste. Que o Bom Pastor Que deu sua vida pela nossa salvação encha-nos a todos com a graça do Santo Espírito”. Depois disso, Zózimo se inclinou diante do abade, pediu suas orações e benção e ficou no mosteiro. Lá ele conheceu anciãos zelosos, tanto na ação quanto na contemplação do Senhor. Eles cantavam incessantemente, permaneciam em oração toda a noite, o trabalho sempre em suas mãos e salmos em seus lábios. Nunca uma palavra vã era ouvida entre eles, nada sabiam sobre adquirir bens temporais ou dos cuidados da vida. Tinham apenas um desejo - ter seus corpos como cadáveres. Seu alimento constante era a Palavra de Deus, e mantinham seus corpos a pão e água apenas; tanto quanto seu amor a Deus lhe permitiam. Vendo isto, Zózimo ficou grandemente edificado e preparou-se para o combate que o esperava. Muitos dias se passaram e chegou o tempo, quando todos os cristãos jejuam e se preparam para adorar a Divina Paixão e Ressurreição de Cristo. Os portões do mosteiro eram sempre fechados e se abriam apenas quando alguém da comunidade era enviado para alguma incumbência. Era um local deserto, onde nunca apareciam visitantes do mundo e sequer era conhecido deles. Havia uma regra no mosteiro que foi a razão pela qual Deus enviara Zózimo para lá. No início do Grande Jejum (no Domingo do Perdão) o padre celebrava a sagrada Liturgia e todos participavam do sagrado corpo e sangue do Senhor. Depois da Liturgia eles iam ao refeitório e podiam comer um pouco de comida quaresmal. Em seguida, todos se reuniam na igreja e depois de rezarem fervorosamente com prostrações, os anciãos se beijavam e pediam-se mutuamente perdão. E cada um fazia uma prostração diante do abade, pedia sua benção e orações para o combate que iam enfrentar. Depois disso, os portões do mosteiro se abriam e cantando, “O Senhor é minha luz e meu Salvação; a quem temerei? O Senhor é o defensor de minha vida; de quem terei medo?” (Salmo 26:1) e o resto daquele salmo, todos saiam para o deserto e atravessavam o Rio Jordão. Apenas um ou dois irmãos permaneciam no mosteiro, não para guardar a propriedade (pois nada havia para ser roubado), mas para não deixar a igreja sem o Divino Ofício. Cada um levava consigo o quanto podia ou desejava em alimento, de acordo com as necessidades de seu corpo: um tomaria um pequeno pão, outro alguns figos, um outro algumas tâmaras ou trigo misturado em água. Alguns nada levavam, mas apenas seus corpos cobertos com trapos e quando a natureza os forçava, se alimentavam de plantas que nasciam no deserto. Depois de atravessar o Jordão, eles se espalhavam em diferentes direções, longe uns dos outros. E esta era a regra de vida que eles tinham e que todos observavam - nenhum deveria falar com o outro, nem saber como o outro vivia ou jejuava. Se acontecesse de um avistar o outro, deveria este se afastar para outra parte da região, vivendo só e sempre cantando a Deus e na hora definida comer uma pequena porção de comida. Desse modo passavam toda a Quaresma e geralmente retornavam ao mosteiro uma semana antes da Ressurreição de Cristo, no Domingo de Ramos. Cada um retornava tendo apenas sua própria consciência como testemunha de seu labor e nenhum perguntava a outro como ele passara seu tempo no deserto. Tais eram as regras no mosteiro. Cada um deles, enquanto no deserto, pelejava consigo mesmo, diante do Juiz da batalha - Deus - não buscando agradar a homens, nem jejuar diante dos olhos de todos. Pois o que é feito para agradar aos homens, ganhar elogios e honrarias, não só é inútil para quem o faz, mas muitas vezes é causa de grande castigo. Zózimo fez como os demais. E foi para longe, bem longe no deserto com um desejo secreto de encontrar algum Pai que estivesse vivendo ali e que pudesse satisfazer sua sede e desejo de Deus. E vagou sem descanso como se corresse para algum lugar definido. Já tinha andado por vinte dias e quando veio a sexta hora ele parou e voltando-se para o oriente, começou a cantar a Sexta Hora e recitar as orações costumeiras. Ele costumava interromper sua jornada em determinados horários para descansar um pouco, para cantar salmos de pé e rezar de joelhos. Assim cantava, sem tirar os olhos dos céus quando subitamente, viu à direita da colina em que se encontrava, algo semelhante a um corpo humano. No início ele ficou confuso, pensando tratar-se de uma visão do demônio e chegou a ter medo. Mas, tendo feito o sinal da Cruz e banido todo o medo, volveu o olhar naquela direção e na verdade viu algo deslizando na direção sul. A forma estava nua, a pele escura, como se queimada completamente pelo calor do sol; o cabelo em sua cabeça era branco como lã e não comprido, indo somente até abaixo do pescoço. Zózimo ficou tão cheio de alegria ao perceber uma forma humana que correu atrás em perseguição, mas a forma fugiu dele. Ele a seguiu, contudo. Finalmente, quando estava próximo a ponto de ser ouvido, ele gritou: — “Por que tu foges de um homem velho e pecador? Escravo do Deus Verdadeiro, espere por mim, quem quer que sejas, em nome de Deus eu te digo, pelo amor de Deus, pelo amor de Quem você vive nesse deserto!” — “Perdoa-me, pelo amor de Deus, mas não posso me voltar em tua direção e mostrar-te minha face, Pai Zózimo. Pois sou uma mulher e estou nua como vês, com as partes vergonhosas descobertas. Mas se podes satisfazer um desejo de uma pecadora, atira-me tua capa de modo que eu possa cobrir meu corpo e voltar-me para que possas abençoar-me”. Aqui o pavor se apoderou de Zózimo, pois ele a ouviu chamá-lo pelo nome. Mas compreendeu que ela não poderia ter feito isso sem conhecê-lo, se não possuísse uma clarividência espiritual. Então ele atendeu ao que ela pedia. Retirou sua velha e gasta capa e atirou-lhe, afastando-se enquanto fazia isso.Ela pegou-o e cobriu pelo menos uma parte de seu corpo. Quando se voltou para Zózimo disse: — “Por que desejaste, Pai Zózimo, ver uma mulher pecadora? O que desejas ouvir ou aprender de mim, tu que não te encolheste diante de grandes obstáculos?” Zózimo atirou-se ao chão e pediu-lhe a benção. Ela igualmente se curvou diante dele. E assim, ficaram no chão, prostrados, pedindo a bênção um do outro. E apenas uma palavra podia ser ouvida de ambos: “Abençoe-me!” Depois de um tempo a mulher disse a Zózimo: — “Pai Zózimo, és tu quem deves abençoar e rezar. Tu és dignificado com a ordem do sacerdócio e por muitos anos tens estado diante do altar sagrado, oferecendo o sacrifício dos Divinos Mistérios”. Isto deixou Zózimo apavorado. Finalmente, com lágrimas ele disse a ela: — “Oh Mãe, cheia do espírito, por teu modo de vida é evidente que vives com Deus e morreste para o mundo. A Graça a ti concedida é aparente - pois me chamaste pelo meu nome e soubeste que sou um sacerdote, embora nunca me tenhas visto antes. A Graça é reconhecida não por uma ordem mas pelos dons do Espírito, então, conceda-me tua benção pelo amor de Deus, pois necessito de tuas preces”. Então, cedendo ao desejo do ancião ela disse: — “Abençoado é Deus que zela pela salvação dos homens e de suas almas”. Ao que Zózimo respondeu: “Amem”. Então ambos se levantaram. E ela lhe disse: — “Por que vieste, homem de Deus, a mim que sou tão pecadora? Por que desejas ver uma mulher nua e despida de toda virtude? Embora eu saiba uma coisa - a Graça do Espírito Santo trouxe-te a mim para prestares-me um serviço no tempo devido. Diga-me pai, como estão vivendo os cristãos? E os reis? Como está sendo conduzida a Igreja?” Zózimo disse: — “Por suas preces, mãe, Cristo tem concedido paz duradoura a todos. Mas, realize um pedido indigno de um velho homem para o mundo inteiro e ore por mim que sou pecador, de modo que meu vaguear no deserto não seja infrutífero”. Ela respondeu-lhe: — “Tu, que és um sacerdote, Pai Zózimo, é quem deves rezar por mim e para todos - pois este é o teu chamado. Mas como devemos todos ser obedientes, farei alegremente o que me pedes”. E com estas palavras ela se voltou para o oriente e levantando seus olhos para o céu e estendendo suas mãos, começou a rezar num murmúrio. Não se podia ouvir palavras distintas, de modo que Zózimo não conseguiu entender coisa alguma do que ela dizia em suas preces. Enquanto isso, ele permanecia de pé, de acordo com sua própria palavra, palpitando, olhando para o chão, sem dizer nada. E ele jurou, chamando a Deus por testemunha, que quando finalmente, pensando que a prece se alongava muito, elevou seus olhos do chão viu que ela permanecia elevada no solo cerca de um braço de distância e orava suspensa no ar. Quando ele viu isso mais pavor se apoderou dele e ele caiu ao chão soluçando e repetindo várias vezes, "Senhor, tenha compaixão." E assim prostrado no chão foi tentado por um pensamento: isto é um espírito e talvez sua oração seja hipocrisia. Mas no mesmo instante a mulher se voltou, elevou-o do solo e disse: — “Por que o pensamento te confunde, Pai, e te tenta a meu respeito, como se eu fosse um espírito e uma fingidora na oração? Saiba, santo pai, que eu sou apenas uma mulher pecadora, embora guardada pelo santo Batismo. E não sou um espírito, mas terra, cinza e carne apenas”. Com estas palavras ela se protegeu com o sinal da Cruz em sua testa, olhos, boca e peito, dizendo: — “Defenda-nos Deus contra o maligno e de seus desígnios, pois feroz é sua batalha contra nós”. Ouvindo e vendo isto, o ancião caiu ao chão e abraçando seus pés, disse entre lágrimas: — “Eu te suplico, pelo Nome de Cristo, nosso Deus, que nasceu de uma Virgem, por cujo amor te despojaste, por cujo amor exauriste tua carne, não te escondas de teu servo; quem és tu, de onde vens e como vieste a este deserto. Diga-me tudo de modo que as maravilhas realizadas por Deus sejam conhecidas. Uma sabedoria escondida e um tesouro secreto - qual proveito há neles? Diga-me tudo, eu te imploro. Não por vaidade ou por exibicionismo falarás, mas para revelar a verdade a mim, um pecador indigno. Creio em Deus, para quem vives e a quem serves. Acredito que Ele me conduziu a este deserto para mostrar-me Seu caminho no que diz respeito a ti. Não está em nosso poder resistir aos planos de Deus. Se não fosse por vontade dele que tu e tua vida fossem conhecidas, Ele não teria me permitido ver-te e não teria me concedido forças para empreender essa jornada, a um como eu que nunca antes ousou deixar sua cela”. Muito mais disse Pai Zózimo. Mas a mulher o ergueu e disse: — “Estou envergonhada, Pai, de falar-te de minha desgraçada vida, perdoe-me, por amor de Deus! Mas já que viste meu corpo nu, devo do mesmo modo, desnudar minhas ações, de modo que saibas com quanta vergonha e obscenidade minha alma está cheia. Eu não corria por vaidade, como pensaste, pois de que devo orgulhar-me - eu que fui um vaso escolhido pelo demônio? Mas quando eu começar minha estória, correrás de mim como se de uma serpente, pois seus ouvidos não suportarão a vileza de meus atos. Mas devo contar tudo sem esconder nada, apenas implorando antes a ti, que rezes por mim, incessantemente, de modo que eu obtenha a misericórdia no dia do Julgamento”. O ancião chorou e a mulher iniciou sua estória. — “Minha terra natal, santo Pai, é o Egito. Ainda quando meus pais eram vivos e eu tinha doze anos, renunciei ao amor deles e fui para Alexandria. Estou envergonhada de relembrar como então, eu primeiro perdi minha virgindade e em seguida, incontida e insaciavelmente, entreguei-me à sensualidade. Falarei disso brevemente, de modo que apenas saibas da minha paixão e lascívia. Por cerca de dezessete anos, perdoe-me, vivi desse modo. Eu era como um fogo de depravação pública. E não era por amor ao ganho - aqui eu falo a pura verdade. Freqüentemente, quando eles desejavam pagar-me, eu recusava o dinheiro. Agia dessa maneira para fazer com que, tantos homens quantos fosse possível desejassem possuir-me, fazendo de graça o que me dava prazer. Não pense que eu fosse rica e essa fosse a razão pela qual eu não pegasse o dinheiro. Eu vivia de pedir e de tecer, mas tinha um desejo insaciável e uma paixão irreprimível por deitar-me na lama. Isto era vida para mim. Todo tipo de abuso da natureza eu considerava ser vida. Assim eu vivia. Então, num verão eu vi uma grande multidão de líbios e egípcios correrem em direção ao mar. Perguntei a um deles, 'para onde estão indo todos esses homens?' Ele respondeu, 'eles estão indo a Jerusalém, para a Exaltação da Cruz Preciosa e Vivificante, que ocorrerá dentro de alguns dias.' Eu disse a ele, 'tu me levas junto se eu desejar ir?' 'Ninguém te impedirá de ir se tens dinheiro para pagar a viagem e a comida.' E eu lhe disse: 'para dizer a verdade, não tenho dinheiro, nem alimento. Mas irei com eles e estarei à bordo. E eles me alimentarão, queiram ou não. Eu tenho um corpo - eles o tomarão ao invés de pagar pela viagem.' De repente enchi-me de desejo de ir, Pai, para ter mais amantes que pudessem satisfazer minha paixão. Eu disse a ti, Pai Zózimo, que não me forçasses a contar-te sobre minha desgraça. Deus é minha testemunha, estou receosa de corromper-te e até ao ar, com minhas palavras”. Zózimo, soluçando, replicou: — “Fala, pelo amor de Deus, Mãe, fala e não quebra o fio de tão edificante estória”. E, continuando sua estória, ela prosseguiu: — “Aquele jovem, ouvindo minhas palavras desavergonhadas, riu e foi-se embora. Enquanto que eu, jogando fora o tear, corri em direção ao mar na direção que todos pareciam seguir e vendo alguns rapazes de pé na praia, cerca de dez ou mais, cheios de vigor e prontidão em seus movimentos, decidi que eles serviam aos meus propósitos; (parecia que alguns esperavam por mais passageiros enquanto outros tinham ido à terra). Desavergonhadamente, como sempre, misturei-me à multidão, dizendo, 'levem-me consigo para onde estão indo; vocês não vão me achar supérflua.' Também acrescentei mais algumas palavras provocando o riso geral. Vendo minha prontidão para a falta de vergonha, eles prontamente colocaram-me a bordo na embarcação. Aqueles que eram esperados também vieram e finalmente partimos. Como posso relatar o que aconteceu depois disso? Que língua pode contar, que ouvidos podem receber tudo o que aconteceu naquela embarcação durante aquela viagem! Dizer que eu frequentemente forçava aqueles pobres moços, até contra sua própria vontade!? Não há depravação alguma, mencionável ou não, que eu não lhes tenha ensinado. Estou surpresa, Pai, como o mar suportou nossa licenciosidade, como a terra não abriu suas mandíbulas, e como o inferno não me engoliu viva, enquanto eu prendia em minha teia tantas pessoas. Mas, acredito que Deus estava buscando meu arrependimento. Pois ele não deseja a morte do pecador, mas magnanimamente espera seu retorno a Ele. Finalmente chegamos a Jerusalém. Passei os dias antes do festival na cidade, vivendo o mesmo tipo de vida, talvez até pior. Eu não estava contente com os jovens que tinha seduzido em alto mar e que me ajudaram a chegar a Jerusalém; também seduzi a muitos outros, tanto da cidade quanto estrangeiros que lá estavam. O dia sagrado da Exaltação da Cruz despontou, enquanto eu ainda estava à caça de jovens. Ao amanhecer, vi que todos corriam para a igreja então, corri com o resto deles. Quando a hora da sagrada elevação se aproximou eu estava tentando abrir caminho entre a multidão, que lutava para chegar às escadarias. Finalmente, com grande dificuldade, consegui ir me espremendo quase até às portas da igreja, de onde a Vivificante Árvore da Cruz estava sendo mostrada ao povo. Mas quando eu pisei no limiar da porta, por onde todos entraram, fui impedida por uma força que não me deixou entrar. Entretanto, completamente ignorada pela multidão me encontrei sozinha no pórtico da igreja. Pensando que isto tivesse acontecido devido à minha fraqueza de mulher, comecei novamente a abrir caminho com os cotovelos no meio da multidão. Mas era em vão meu esforço. Novamente meus pés pisaram no limiar onde outros iam entrando na igreja, sem encontrar nenhum obstáculo. Eu somente parecia não ser aceita na igreja. Era como se um destacamento de soldados estivesse lá de pé, se opondo à minha entrada. Mais uma vez fui excluída pela mesma força poderosa e novamente fiquei no limiar. Havendo tentado por três ou quatro vezes, finalmente me senti esgotada e não tendo mais forças para empurrar e ser empurrada, fui para o lado e permaneci num canto do pórtico. E então, com grande dificuldade, começou a despontar algo em mim e comecei a perceber a razão pela qual eu estava sendo impedida de ver a Cruz Vivificante. A palavra da salvação gentilmente tocou os olhos do meu coração e revelou-me que era minha vida impura que fechava a entrada para mim. Comecei a chorar e lamentar e bater no meu peito e a suspirar das profundezas do meu coração. E assim permaneci chorando, quando vi acima, um ícone da Santíssima Mãe de Deus. E voltando para ela meus olhos do corpo e da alma eu disse: 'Ó Senhora, Mãe de Deus, que deste à luz na carne a Deus, a Palavra; eu sei, ó quão bem eu sei, que não há nenhuma honra ou louvor para vós quando alguém tão impura e depravada como eu, olha para teu ícone, ó sempre Virgem, que mantiveste vosso corpo e alma na pureza. Certamente inspiro desprezo e desgosto ante vossa pureza virginal. Mas já ouvi que Deus, que nasceu de vós, se tornou homem para chamar pecadores à conversão. Então, ajude-me, pois não tenho outro auxílio. Ordene que os portais da igreja se abram para mim. Permita-me ver a venerável Árvore na qual Ele que nasceu de vós, sofreu na carne e na qual Ele derramou seu preciosíssimo Sangue pela redenção dos pecadores e para mim, indigna como sou. Seja minha testemunha fiel diante de Teu Filho que eu nunca mais corromperei meu corpo na impureza da fornicação, mas tão logo eu veja a Árvore da Cruz, renunciarei ao mundo e às suas tentações e irei onde quer que me conduzas. Assim falei e como se recobrasse nova esperança, com fé firme e sentindo alguma confiança na misericórdia da Mãe de Deus, deixei o lugar onde tinha ficado rezando. E fui novamente, misturada à multidão que fazia seu caminho dentro do templo. E ninguém parecia impedir-me, ninguém estorvou minha entrada na igreja. Fiquei possuída de tremor e estava quase à beira do delírio. Tendo chegado tão próximo das portas, o que eu não conseguira antes, como se a mesma força que me impedira agora abrisse caminho para mim, eu agora entrava sem dificuldade e me encontrei no lugar santo. E então vi a Cruz Vivificante. Vi também os Mistérios de Deus e como o Senhor aceita o arrependimento. Jogando-me ao chão, adorei aquela terra santa e tremendo, beijei-a. Então saí da igreja e fui àquela que prometeu ser minha segurança, ao lugar onde eu selei meu voto. E dobrando meus joelhos diante da Virgem Mãe de Deus dirigi a ela estas palavras: 'Ó Amável Senhora, vós mostrastes-me vosso grande amor por todos os homens. Glória a Deus, que aceita o arrependimento de pecadores através de vós. O que mais posso lembrar ou dizer, eu que sou tão pecadora? É hora para mim, ó Senhora, de cumprir meu voto, de acordo com o vosso testemunho. Agora, conduza-me pela mão pelo caminho do arrependimento!' E ao dizer estas palavras ouvi uma voz do alto: 'Se tu atravessares o Jordão irás encontrar glorioso repouso'. Ouvindo esta voz e crendo que eram para mim, gritei para a Mãe de Deus: Ó Senhora, Senhora, não me abandones!' Com estas palavras deixei o pórtico da igreja e parti para minha jornada. Quando eu ia deixando a igreja um estranho olhou-me e deu-me três moedas, dizendo: 'Irmã, tome isto.' Pegando o dinheiro, comprei três pães e levei-os comigo como um presente abençoado. Perguntei à pessoa que vendeu os pães: 'Qual é o caminho para o Jordão?' Fui direcionada para o portão da cidade que conduzia àquele caminho. Correndo atravessei os portões e ainda chorando iniciei minha jornada. Perguntei o caminho àqueles que encontrei e depois de caminhar pelo resto daquele dia, (penso que eram nove horas quando eu vi a Cruz), finalmente, ao por do sol, alcancei a igreja de São João Batista, que ficava na margem do Jordão. Depois de rezar no templo, desci o Jordão e lavei o rosto e as mãos nas águas santas. Participei dos santos e vivificantes Mistérios na Igreja do Precursor e comi a metade de um dos pães. Em seguida, após beber um pouco de água do Jordão, deitei-me e passei a noite no chão. Pela manhã encontrei um pequeno bote e cruzei para o lado oposto. Novamente, rezei à Nossa Senhora para conduzir-me onde desejasse. Então, encontrei-me nesse deserto e desde então até o dia de hoje sou estranha a todos, mantendo-me longe das pessoas e delas fugindo. E vivo aqui, agarrando-me ao meu Deus Que salva a todos que se voltam para Ele, os de coração fraco e nas tempestades”. Zózimo perguntou-lhe: — “Quantos anos se passaram desde que começaste a viver neste deserto?” Ela replicou: — “Quarenta e sete anos se passaram, creio, desde que deixei a cidade santa”. Zózimo inquiriu: — “Mas qual alimento encontraste?” A mulher disse: — “Eu tinha dois pães mais a metade quando cruzei o Jordão. Logo eles ficaram duros como pedra. Comendo aos pouquinhos eles acabaram em alguns poucos anos”. Zózimo continuou: — “Como se explica que tenhas vivido por tão longos anos, assim, sem ficares doente, sem sofrer de algum modo uma mudança tão completa?” Ela respondeu: — “Tu me lembras, Zózimo, do que eu não ouso falar. Pois quando me lembro dos perigos que superei, todos os pensamentos violentos que me confundiram, novamente tenho receio de que eles venham a me dominar”. Zózimo falou: “Não escondas nada de mim; fala-me sem ocultar coisa alguma”. E ela respondeu-lhe: — “Creia-me, Pai, por dezessete anos vivi nesse deserto lutando contra feras selvagens - desejos loucos e paixões. Quando ia me alimentar eu costumava lamentar a carne e o peixe que eu tinha em abundância no Egito. Lamentava também não ter vinho que eu apreciava tanto, pois eu bebia muito vinho quando vivia no mundo, enquanto aqui eu nada tinha, nem mesmo água. Queimava-me até sucumbir de sede. Um desejo atroz de canções libertinas também me perturbavam e me confundiam grandemente, levando-me quase a cantar canções satânicas, que eu tinha aprendido antes. Mas quando esses desejos me vinham, eu batia no peito e me recordava do voto que tinha feito antes de vir para o deserto. Em meus pensamentos voltava-me para o ícone da Mãe de Deus que me tinha recebido e a quem clamava na oração. Implorava-lhe para dar caça a esses pensamentos, diante dos quais minha alma estava sucumbindo. E depois de chorar por longo tempo e batendo no peito, eu costumava ver uma luz que parecia brilhar sobre mim de algum lugar. E depois da violenta tempestade finalmente vinha a paz. E como posso dizer-lhe sobre os pensamentos que me instavam à fornicação, como posso expressá-los a ti, Pai? Um fogo inflamava meu miserável coração que parecia queimar-me completamente e me despertava uma sede de abraços. Tão logo esse desejo me surgia, eu jogava-me ao solo e molhava-o de lágrimas, como se visse diante de mim minha testemunha, que tinha me aparecido em minha desobediência e que parecia ameaçar punição para o castigo. E eu não me erguia do chão (algumas vezes ficava lá prostrada por um dia e uma noite), até que a calma e a doce luz descesse e me iluminasse e pusesse em fuga os pensamentos que me possuíram. Mas sempre eu voltava os olhos de minha mente para minha protetora, pedindo-lhe para estender seu auxílio a uma que estava afundando rápido nas dunas do deserto. E sempre a tive como meu socorro e aquela que aceitava meu arrependimento. E assim vivi por dezessete anos, entre constantes perigos. E desde então a Mãe de Deus me auxilia em tudo e me conduz como se pela mão fosse”. Zózimo perguntou: — “Como pode ser que não tenhas necessitado de alimento e roupas?” Ela respondeu: — “Quando terminaram os pães que trouxe, de que já falei, por dezessete anos me alimentei de ervas e tudo que pudesse ser encontrado no deserto. As roupas que eu trazia quando atravessei o Jordão se tornaram rotas e gastas. Sofri grandemente o frio e também o calor extremo. Às vezes o sol me queimava completamente e em outras eu estremecia enregelada e freqüentemente caia ao chão onde permanecia inerte, sem respirar. Eu lutava contra muitas aflições e com terríveis tentações. Mas desde então e até agora, o poder de Deus numerosas vezes guardou minha alma pecadora e meu pobre corpo. Mas quando penso nos perigos dos quais Nosso Senhor me livrou, tenho alimento imperecível de esperança e salvação. Sou alimentada e vestida pela toda poderosa Palavra de Deus, o Senhor de todos. Pois não é somente de pão que se vive. E aqueles que se despojaram dos trapos do pecado não encontram refúgio, escondendo-se nos vãos das rochas (Job 24; Heb 11:38)”. Ouvindo-a citar as Escrituras, de Moisés a Job, Zózimo perguntou-lhe: — “E então tens lido os Salmos e outros livros?” Ela sorriu a isto e disse ao ancião: — “Creia-me, desde que atravessei o Jordão não vi um rosto humano, exceto o teu hoje. Não vi uma fera ou uma criatura viva desde que vim ao deserto. Nunca aprendi nos livros. Também nunca ouvi alguém que cantasse ou lesse deles. Mas a palavra de Deus que é viva e ativa, por si mesmo, ensina a um homem o saber. E assim chega ao fim minha estória. Mas como te pedi no início, e também agora, imploro pelo amor da Palavra encarnada de Deus, reze ao Senhor por mim que sou tão grande pecadora”. Assim terminando, ela se inclinou diante dele. Com lágrimas ele exclamou: — “Bendito é Deus Que cria o grande e o maravilhoso, o magnífico e o glorioso sem fim. Bendito é Deus que me mostrou como Ele recompensa aqueles que O temem. Verdadeiramente, Ó Deus, Vós não abandonais aqueles que vos buscam!” E a mulher, não permitindo ao ancião curvar-se diante dela, disse: — “Eu te peço, santo Pai, pelo amor de Jesus Cristo, nosso Deus e Salvador, não contes a ninguém o que ouviste, até que Deus me tire desse mundo. E agora vá em paz e novamente me verás no próximo ano e eu a ti , se Deus nos preservar em Sua grande misericórdia. Mas, pelo amor de Deus, faças como te peço. No próximo ano, durante a Quaresma, não atravesses o Jordão, como é costume no mosteiro”. Zózimo ficou surpreso ao ver que ela conhecia as regras do Mosteiro e só pôde dizer: — “Glória a Deus que concede grandes dons àqueles que O amam”. Ela continuou: — “Permaneça, Pai, no mosteiro. E mesmo que desejes partir, não o conseguirás. E ao por do sol do dia santo da Última Ceia, coloque um pouco do vivificante Corpo e Sangue de Cristo dentro de um cálice sagrado, digno de conter tais Mistérios e traga-os para mim. E espere por mim na margem do Jordão, nas vizinhanças das partes habitadas da terra, de modo que eu possa vir e participar dos Dons vivificantes. Pois, desde a vez que comunguei no templo do Precursor, antes de atravessar o Jordão até este dia, não mais me aproximei dos Sagrados Mistérios. E tenho sede deles com irreprimível amor e desejo. E assim, peço e imploro a ti que me concedas essa graça, traga-me os Mistérios vivificantes nessa mesma hora, quando Nosso Senhor fez com que seus discípulos participassem de sua Divina Ceia. Diga ao Abade João do mosteiro onde vives: 'Cuida de si e de teus irmãos, pois há muito o que se corrigir'. Apenas não digas isto agora, mas quando Deus te conduzir. Ora por mim!” Com estas palavras ela desapareceu nas profundezas do deserto. E Zózimo, caindo de joelhos e curvando-se em direção ao chão onde ela havia estado, deu glória e graças a Deus. E depois de vagar através do deserto, ele voltou ao mosteiro no dia em que todos os irmãos retornavam. Durante todo o ano ele manteve silêncio, não ousando contar a ninguém o que tinha visto. Mas rezava a Deus para conceder-lhe outra chance de ver o querido e ascético rosto. E quando finalmente chegou o primeiro domingo do Grande Jejum, todos partiram para o deserto com as orações costumeiras e os cantos dos salmos. Apenas Zózimo ficou retido, doente - estava em febre. E ele se lembrou do que a santa lhe dissera: "e mesmo se desejares partir, não conseguirás." Muitos dias se passaram e finalmente, recuperando-se de sua doença ele permaneceu no mosteiro. E quando aconteceu que os monges retornaram e o dia da Última Ceia despontou, ele fez como fora ordenado. E colocando um pouco do puríssimo Corpo e Sangue dentro de um pequeno cálice e colocando alguns figos, tâmaras e lentilhas mergulhadas em água dentro de um cestinho, partiu para o deserto e alcançou as margens do Jordão e se sentou esperando pela santa. Ele aguardou um bom tempo e depois começou a duvidar. Então, levantando os olhos para o céu começou a rezar: — “Concede-me ó Senhor, ver aquela que me concedeste uma vez contemplar. Não me deixes partir em vão por causa do peso de meus pecados”. E então, outro pensamento lhe ocorreu: — “E se ela vier? Não há nenhum barco; como ela irá atravessar o Jordão para vir a mim, que sou tão indigno?” Ainda assim pensava, quando viu a santa mulher aparecer e parar do outro lado do rio. Zózimo se levantou, alegrando-se, dando glória e agradecendo a Deus. E novamente veio a ele o pensamento de que ela não poderia atravessar o Jordão. Então ele viu-a fazer o sinal da Cruz sobre as águas do rio Jordão (e a noite era de lua, como ele relatou mais tarde) e então ela pisou nas águas e começou a caminhar sobre a superfície, em direção a ele. E quando ele desejou se prostrar ela gritou para ele, ainda caminhando sobre a água: — “O que estás fazendo, Pai, tu és um sacerdote e estás levando os divinos Dons”! Ele obedeceu-lhe e ao chegar à praia ela disse ao ancião: — “Pai, abençoa-me, abençoa-me!” Ele respondeu tremendo, pois um estado de confusão tomara conta dele ao presenciar o milagre: — “Verdadeiramente Deus não mentiu ao prometer que quando estivéssemos puros seríamos como Ele. Glória a Vós, Cristo nosso Deus, Que me mostraste através dessa vossa serva, quão distante eu estou da perfeição”. Aqui a mulher pediu-lhe para rezar o Credo e o Pai Nosso. Ele iniciou, ela terminou oração e de acordo com o costume daquela época, deu-lhe o beijo da paz nos lábios. Tendo participado dos Santos Mistérios, ela elevou suas mãos para o céu e suspirou com lágrimas em seus olhos, exclamando: — “Agora, deixai vossa serva ir em paz, Ó Senhor, de acordo com Vossa palavra, pois meus olhos viram a Vossa salvação”. Depois ela disse ao ancião: — “Perdoa-me, Pai, por pedir-lhe, mas conceda-me outro favor. Vá agora para o mosteiro e que a graça de Deus te guarde. E no próximo ano, venha novamente ao mesmo lugar onde primeiro encontrei-te. Venha, por amor de Deus, pois tu me verás novamente, pois tal é a vontade de Deus.” Ele disse a ela: — “A partir desse dia eu gostaria de seguir-te e sempre ver teu rosto santo. Mas por ora realize o único desejo desse velho homem e tome um pouco do alimento que eu te trouxe”. E ele mostrou-lhe a cesta, sendo que ela apenas tocou com a ponta dos dedos as lentilhas e pegando alguns grãos disse que o Espírito Santo guarda a substância da alma impoluta. Então acrescentou: — “Reza, pelo amor de Deus, por mim e lembre-se de uma miserável pecadora”. Tocando os pés da santa e pedindo suas orações pela Igreja, pelo reino e por si próprio, ele deixou-a partir com lágrimas, enquanto ele se ia suspirando e muito sentido, pois ele não podia esperar vencer o invencível. Enquanto isso ela novamente fez o sinal da Cruz sobre o Jordão, pisou nas águas e atravessou-o como antes. E o ancião voltou, cheio de alegria e terror, acusando-se a si mesmo de não ter perguntado à santa o seu nome. Mas decidiu fazê-lo no próximo ano. E quando outro ano se passou, ele foi novamente para o deserto. Alcançou o mesmo lugar mas não pôde ver ninguém. Então, levantando os olhos ao céu como antes, rezou: — “Mostra-me, Ó Senhor, vosso puro tesouro, que escondeste no deserto. Mostra-me, eu vos peço, o anjo na carne, de quem o mundo não é digno." Então, no lado oposto do rio, sua face voltada para o sol nascente, ele viu a santa, morta no chão. Suas mãos estavam cruzadas de acordo com o costume e sua face voltada para o Leste. Correndo, ele chorava sobre os pés da santa e beijava-os, não ousando tocar mais nada”. Por um longo tempo ele chorou. Depois recitando os salmos apropriados, disse as orações fúnebres e pensou consigo : "Devo enterrar o corpo de uma santa? Ou isto seria contrário aos seus desejos?" E então ele viu palavras traçadas no chão, perto da cabeça dela: — “Pai Zózimo, enterra neste local o corpo da humilde Maria. Volte ao pó o que é pó e reza ao Senhor por mim, que parti no mês de Fermoutin do Egito, chamado Abril pelos Romanos, no primeiro dia, na mesma noite da Paixão de Nosso Senhor, depois de participar dos Divinos Mistérios”. (Sta. Maria morreu em 522 A.D.) Lendo isto o ancião ficou feliz de conhecer o nome da santa. Ele compreendeu também que, tão logo ela participou dos Divinos Mistérios na margem do Jordão, ela foi transportada ao lugar onde faleceu. A distância que Zózimo levou vinte dias para cobrir, Maria evidentemente atravessou em uma hora e finalmente entregou sua alma a Deus. Então Zózimo pensou: "Está na hora de fazer o que ela pediu. Mas como vou cavar uma sepultura sem nada nas mãos?” E então ele viu nas proximidades um pequeno pedaço de madeira deixado por algum viajante do deserto. Pegando-o começou a cavar o chão. Mas a terra era dura e seca e não correspondia aos esforços do velho. Ele ficou cansado e molhado de suor. Suspirava das profundezas de sua alma e levantando os olhos viu um grande leão, próximo ao corpo da santa, a lamber-lhe os pés. À vista do leão ele tremeu de medo, especialmente quando se lembrou das palavras de Maria de que ela nunca havia visto feras selvagens no deserto. Mas, protegendo-se com o sinal da Cruz, ele pensou que o poder daquela que ali jazia, o protegeria e o guardaria incólume. Enquanto isso, o leão se aproximou dele, mostrando afeição em cada movimento. Zózimo disse ao leão: — “O Grande Uno ordenou que o corpo dela seja enterrado. Mas eu sou velho e não tenho forças para cavar a sepultura (pois não tenho pá e demoraria muito para ir conseguir uma), então, poderias realizar o trabalho com suas garras? Então, poderemos entregar à terra o templo mortal da santa”. Enquanto ainda falava, o leão começou a cavar com suas patas dianteiras um buraco suficientemente fundo para enterrar o corpo. Novamente o ancião lavou os pés da santa com suas lágrimas e pedindo-lhe que rezasse por todos, cobriu o corpo com terra na presença do leão. Foi como tinha sido, nu e descoberto de tudo, com apenas o manto esfarrapado que Zózimo lhe dera e com o qual Maria se voltara para tentar cobrir parte do seu corpo. Então ambos partiram. O leão desapareceu nas profundezas do deserto, como um carneirinho, enquanto Zózimo retornou ao mosteiro glorificando e bendizendo a Cristo Nosso Senhor. E ao alcançar o mosteiro contou a todos os irmãos sobre tudo, diante do que todos se maravilharam ao ouvir os milagres de Deus. E com respeito e amor eles guardaram a memória da santa. O Abade João, como santa Maria havia previamente dito ao Pai Zózimo, encontrou um número de coisas erradas no mosteiro e se livrou delas com a ajuda de Deus. E São Zózimo morreu no mesmo mosteiro, quase atingindo a idade de cem anos e passou para a vida eterna. Os monges guardaram esta estória sem escrevê-la, passando-a de viva voz de um para outro. Mas eu, (acrescenta Sofrônio), tão logo a ouvi, escrevi-a. Talvez alguém mais, melhor informado, já tenha escrito a vida da santa, mas tanto quanto possa, registrei tudo, acreditando acima de tudo o mais. Que Deus que realiza milagres incríveis e generosamente concede dons àqueles que se voltam para Ele com fé, recompense aqueles que buscam luz para si mesmos nessa estória, que ouvem, lêem e são zelosos em escrevê-la, e que Ele conceda a esses, o destino da bem-aventurada Maria, junto com todos os que em diferentes épocas, agradaram a Deus com seus trabalhos e pensamentos piedosos. E demos também glória a Deus, o Rei eterno, que Ele nos conceda também Sua misericórdia no dia do Julgamento pelo amor de Jesus Cristo, Nosso Senhor, a Quem pertencem toda glória, honra, domínio e adoração com o Pai Eterno e o Santíssimo e Vivificante Espírito, agora e sempre, e através dos tempos. Amém! |